Senda

Comparo o acto de viver a um acto de fé porque, convenhamos, não houvesse a crença em algo melhor no futuro, muitos de nós desistiriam a meio caminho. 

Há quem fale em “viver intensamente”, “viver plenamente”. Mas o que significa isso? Que intensidade e plenitude devemos nós almejar? Dinheiro, luxo, riqueza, amor? Será que isso tudo é mesmo sinónimo de felicidade? É possível sermos felizes num mundo de dor e de sofrimento?

Porque o sofrimento existe e, lamentavelmente, chega a ter mais força do que o nosso desejo de felicidade. Somos condicionados pelos nossos medos e expectativas. Atribuímos responsabilidades aos outros, ao karma, aos astros…. Incompatibilizamo-nos. Repetimos padrões de comportamento. Insistimos nos mesmos dramas. Acertamos, erramos, acertamos, erramos. A vida é isto.  Uma sucessão de momentos intermitentes, uma oscilação entre a alegria e a tristeza, a fé e a descrença, a certeza e a dúvida. Faz tudo parte do processo de crescimento e crescer dói.

Ontem, enquanto googlava na internet, e pensava nestas coisas, descobri um texto magnífico no site da União Budista (ou não fosse eu uma entusiasta do Budismo) sobre o primeiro sermão de Buda relativamente às quatro nobres verdades, e que incide na ideia de sofrimento. (1)
Siddharta Gautama (Buda) cresceu rodeado de luxo e ignorante no que concerne a alguns dos grandes dramas da vida: a doença, a velhice e a morte, até que três encontros irão mudar a sua vida para sempre e ele descobre algo que até então desconhecia: a dor e o sofrimento.

O choque terá sido tão grande para Siddharta como é para nós quando descobrimos que o sofrimento é real.  Falo daquelas dores que nos trucidam por dentro. As dores que ultrapassam a epiderme e roçam na alma. Quando tudo o que conhecíamos ou dávamos como garantido cessa. Quando perdemos a fé. Quando perdemos a vontade. Quando temos de continuar em frente sem saber como.
Dessa ideia de sofrimento “nasce” a primeira nobre verdade. Tudo é sofrimento. A palavra palí para sofrimento é “dukkha”.
Em Abril fiz um workshop com o Tomás Zorzo e recordo-me de ele dizer que “dukkha” também podia ser traduzido como “ausência de espaço”, por oposição a “sukkha” (onde há espaço). É por isso que, por exemplo, no yoga se dá tanta importância aos exercícios de pranayama. Pranayama é comumente traduzido como expansão do prana, sendo que prana é força vital. É essa expansão que nos permite ganhar espaço interior. Quem não teve já um professor de Yoga a dizer: “Respira!”, “Respira!”, “More breath! More breath!”. O incentivo é dado para que a nossa respiração consiga, inclusivamente, ser mais audível do que os nossos pensamentos. Porque o problema esta na mente. Não é o coração que sente pouco ou sente em demasia. A mente sim é que dita as regras, tal como um maestro a orientar uma orquestra, sendo que, para o nosso bem ou mal, somos o maestro e a orquestra ao mesmo tempo. E,infelizmente, nem sempre em sintonia. 
Diz Buda que este sofrimento vem do nosso apego, dos desejos, da nossa ignorância (segunda nobre verdade). Tomamos o ilusório por real, a mentira por verdade, o impermanente por permanente. Queremos ter, queremos possuir. Acabamos por levar tanta coisa desnecessária a tiracolo. Não vale a pena. Nada é para sempre. Nem nós. Basta fazer um exercício simples de tentar conter água nas mãos juntando-as em concha como se fosse um recipiente. O resultado é inevitável. A água cai por entre os dedos. O que hoje é verdade, amanhã é mentira, o que hoje é bom, amanhã é mau. Não levamos nada connosco a não ser a experiência. Nada é nosso, a não ser os nossos sonhos. E também os sonhos mudam porque eles mudam connosco e todos nós mudamos todos os dias. Podemos verificar isso quando nos olhamos ao espelho. As rugas manifestam-se, os cabelos brancos aparecem. Já para não falar das dores físicas que se instalam. De que adiantam os bens, o desejo de posse, os medos, as frustrações? De que adianta tudo isso se estamos apenas aqui de passagem?
É este apego que nos mantem presos à roda do samsara, presos ao nosso raio de visão.
Buda apresenta-nos, então, a terceira nobre verdade, que visa a cessação do sofrimento, ou nirvana.
De todas as explicações que li, encontrei uma muito interessante que pretende clarificar o conceito pela junção de nir [não] e vana [movimento]. Seria, portanto, a ausência de movimento. 
Gosto desta imagem: ausência de movimento. E ainda gosto mais de pensar que talvez um nirvana (com minúsculas) seja praticável no aqui e agora.
Não é a ideia de estar estático, mas de permanecer imperturbável. Não se trata de deixar de sentir, mas sim em ver tudo de uma forma diferente. Compreender por fim. Ver de fora da gaiola!  Ver do topo da montanha! Ver sem véus! Ver sem ideias pré-concebidas, sem preconceitos! Ver como nunca vimos antes, como se alguém nos restituísse a visão depois de uma vida de cegueira.
A quarta nobre verdade apresenta o caminho para a cessação do sofrimento, o caminho óctuplo: entendimento correto, pensamento correto, linguagem correta, ação correta, modo de vida correto, esforço correto, atenção plena correta, concentração correta.
É um caminho difícil? Sim. Mas talvez não seja mais difícil do que as escolhas que insistimos em fazer.
Voltando à questão da possibilidade de sermos felizes num mundo de sofrimento, creio que é possível. O sofrimento existe, mas não tem de definir quem nós somos. Era isso que Buda pretendia explicar através das quatro nobres verdades. O trabalho é identificar a sua origem e encetar o processo de cura que, eventualmente, nos libertará dessa dor. Tal como fazemos quando é diagnosticada uma doença física.
A maior dificuldade, creio eu, é que libertarmo-nos implica que olhemos para dentro de nós mesmos. E quando olhamos para dentro, corremos o risco de descobrir algo que não gostamos ou, pior, descobrimos algo que nos obriga a responsabilizarmo-nos pela vida que temos. E aí a culpa deixa de ser do mundo e passa a ser nossa. 




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